O cinema pode ser uma arte e um instrumento de conhecimento, um meio de descoberta, mas é geralmente utilizado como uma prodigiosa máquina de propaganda e persuasão, que, cativando o espectador com seus poderosos meios de sedução e entretenimento, instala em sua alma uma série de desvios, violando completamente a sua liberdade.
Não, o cinema não está morto — mas bem que poderia.
Poucas não foram as vezes em que o cinema viu sua morte ser decretada ao longo da sua história.
Talvez a mais emblemática delas tenha se dado por volta dos anos 30, com a ascensão do cinema falado e o conseqüente abandono das produções mudas. Em seguida, com a popularização da televisão nos Estados Unidos durante os anos 50, as pessoas deixaram de depender das salas de cinema ao possuir suas próprias telas.
Independência, essa, que foi acentuada com o nascimento do gravador de vídeo e também do controle remoto, itens que concederam uma autonomia quase total aos espectadores, que agora já não estavam mais presos à programação das salas ou dos canais de TV.
Em decorrência desses eventos e tantos outros posteriores, o espectador foi paulatinamente retirado de uma posição passiva diante dos filmes e produções que o deixava “preso” a contemplar as imagens projetadas na tela, totalmente entregue ao que lhe era apresentado.
E foi da observação de cada uma das etapas desse processo que os figurões responsáveis pelos estúdios de Hollywood, cientes do progressivo ganho de autonomia do espectador, foram percebendo a necessidade de implementar adaptações estruturais na linguagem e na narrativa cinematográficas que eles mesmos haviam criado e exportado para o mundo, de modo a conservar o seu controle sobre a atenção do público.
Daí que em tantos momentos ao longo do tempo teóricos e cineastas, não reconhecendo mais a essência do cinema — cuja concepção parece variar nas diferentes mentes — nas grandes produções cinematográficas, tenham se revoltado contra essas mudanças e, algumas vezes, ido a público declarar a morte do cinema como conheciam.
Foi o que fez, por exemplo, David Lynch, considerado por muitos como um dos maiores diretores da história, que, em 2023, falou que os cinemas estavam chegando ao fim, que a arte e a escrita cinematográficas acabaram. Numa entrevista à revista Cahiers du Cinema, ele criticou o formato de produção e distribuição dos filmes nos streamings de vídeo, que, juntamente aos seriados, estão tirando o lugar do cinema.
O mesmo já tinha feito o famoso diretor Martin Scorsese em 2016, ao dizer, em diversas ocasiões, que o cinema que conhecia e com o qual cresceu está morto. Segundo ele, as produções atuais de Hollywood são apenas sucessões de imagens que não significam mais nada.
Além deles, muitos outros cineastas já deram como certa a morte do cinema, culpando, sobretudo, a superficialidade narrativa e a fraqueza de conteúdo dos filmes produzidos a toque de caixa para suprir exclusivamente demandas de mercado por entretenimento, como é o caso dos que ganham luz atualmente nos grandes estúdios e plataformas de streaming.
O que parecem ignorar, no entanto, é que os modelos padronizados de filmes que tanto criticam na contemporaneidade não são mais do que o resultado natural daquele processo “evolutivo” que descrevemos no início e se alimentam precisamente da mesma estrutura e linguagem cinematográfica de que eles fizeram e fazem uso na maioria de suas próprias obras e que, por meio delas, ajudaram a propagar.
Como dissemos, o modo hollywoodiano de fazer cinema foi estrategicamente construído para superar a progressiva autonomia do espectador e manter o controle da sua atenção, conservando sobre ela a sua primazia
Claro. Afinal, como Hollywood seria o que é hoje, se não tivesse encontrado meios de superar as cada vez mais variadas formas de entretenimento — ou de utilizá-las ao seu favor — para que o seu poder sobre a atenção e o interesse do público seja mantido?
E isso é feito de diversas maneiras, mas sobretudo pela própria estrutura narrativa e estética dos filmes, propositalmente construída para manipular o olhar e os sentimentos do espectador, produzindo nele constantes expectativas acerca do que será mostrado em seguida.
Daí que, no cinema hollywoodiano, a imagem seja sempre utilizada e tratada de modo que seu conteúdo seja reduzido à informação. Assim, cada plano, cada cena, contém uma informação que, isolada do restante, não tem sentido por si e precisa se encadear com as informações seguintes para fazer com que o mecanismo da história avance e a pessoa que assiste esteja sempre curiosa e exasperada em relação ao que há de se desenrolar.
Por isso, você nunca — ou, ao menos, quase nunca — tem a permissão de se deter em uma única imagem ou cena para contemplar o seu conteúdo, pois o que está ali só interessa como suporte instrumentalizado para transmitir a informação narrativa.
Você não se relaciona em profundidade com as imagens projetadas, mas apenas horizontalmente. O objetivo máximo e primordial de cada elemento é fazer com que você deseje a próxima imagem, a próxima cena, até o desfecho. Sua atenção não é estimulada a contemplar o que vê, vasculhar e encontrar algo dentro daquilo, pois é sempre precipitada para a frente, para a informação seguinte
Se, por essa descrição, você encontra alguma dificuldade em percebê-lo, nós propomos um experimento.
Da próxima vez em que for assistir a uma das mais badaladas produções hollywoodianas do momento, preste atenção em quantos cortes e mudanças de planos e enquadramento acontecem já nos primeiros minutos. Tente observar a quantidade absurda de informação narrativa que é despejada ante os seus olhos, sobre o perfil psicológico dos personagens, os conflitos que são estabelecidos e a consequente expectativa que é propositalmente gerada relativamente à sua resolução.
Depois, reflita se tudo não é montado para que você fique preso àquilo, numa profusão contínua de afetos e estímulos.
Nesse sentido, não é difícil entender por que entre os “cinéfilos” parece ter surgido uma cultura anti-spoilers. Afinal, assistir a um filme já não é uma experiência artística em que se pára para contemplar um registro ou uma expressão da realidade tecnicamente produzidos por um artista, mas uma mera exposição a um encadeamento frenético de imagens responsável quase unicamente por uma explosão dopaminérgica.
E se a alguém é revelado de antemão o desfecho ou algum fato crucial da narrativa, toda aquela cadeia de expectativas é violada e o transe tensional a que seria submetido, enfraquecido.
Fato é que todo cineasta tem um grande poder em suas mãos.
Por meio da manipulação, da qual já falamos, de imagens que refletem elementos da realidade, como ambientes, cenários e pessoas — sim, pois os atores, ainda que estejam encenando personagens fictícios, são pessoas reais —, ele pode retirar todas as informações que considere supérfluas ao andamento da narrativa, reduzindo tudo o que há de real ao mínimo necessário para o que o espectador receba apenas aquilo que é suficiente para o avançar do enredo.
E esse é um artifício utilizado à exaustão nos estúdios de Hollywood. Afinal, o importante é manter o espectador preso na narrativa, aprisionando sua atenção de modo a conduzi-la na direção que se pretende.
E é aqui que encontramos um problema ainda mais grave e profundo.
Uma das principais características do modelo cinematográfico criado pela indústria hollywoodiana é utilização de meios eficazes para a neutralização do conteúdo da realidade.
Assim, os cineastas determinam o que o espectador vê e percebe, de modo que veja não um evento do real, artisticamente registrado e comunicado, mas apenas o resultado de uma análise do próprio cineasta.
E como isso é feito a partir de imagens captadas da superfície real e sensível do mundo, muitos vislumbraram aí a possibilidade de se construir uma poderosíssima máquina ideológica, que, através das aparências da realidade, mostra uma interpretação do mundo como se fosse o próprio mundo.
Desse modo, os espectadores acabam sendo levados a aderir a visões de mundo sem se darem conta, de forma natural e espontânea. Afinal, as imagens dão a impressão de realidade, maquiando o elemento ideológico significante que há nelas.
Quebra-se a realidade em pedaços, joga-se fora o que é “supérfluo”, isto é, contrário a determinada tese ou concepção de mundo, e se mantém apenas os fragmentos que são passíveis de serem encadeados para produzir certos esquemas informativos e ideológicos.
E esse, basicamente, é o cinema hollywoodiano, cujos filmes tentam impactar a audiência não pela força da realidade, através de um registro dela e de sua comunicação, mas com a força de idéias. Assim, a mensagem ou a “moral” da obra surge tão somente por aqueles encadeamentos sucessivos de informações e abstrações, despidos da natureza bruta da realidade.
Desse modo, o cinema, que poderia ser uma arte ou um instrumento de conhecimento, um meio de descoberta, é majoritariamente utilizado como uma prodigiosa máquina de propaganda e persuasão que, cativando o espectador com seus poderosos meios de sedução e entretenimento, instala em sua alma uma série de desvios, violando completamente a sua liberdade.
Esse é um cinema que não está morto, mas bom seria que estivesse.
Diante de tudo isso, talvez alguém ainda argumente que o cinema não se reduz a Hollywood e que essa é uma realidade que não deve ser atribuída a todos os estúdios e realizadores. Acontece que, como dissemos, esse modelo, essa estrutura cinematográfica não só foi concebida e aplicada por lá, mas exportada para o mundo e tornou-se onipresente.
A verdade é que, hoje, a quase totalidade dos filmes são de Hollywood, ainda que não sejam feitos ali.
Mas há, sim, vivo ainda um cinema para além de Hollywood, para o qual não estão abertas as grandes salas ou as sessões de destaques dos mais famosos streamings. Ele existe, inspira e exala a realidade como ela é, sem ferramentas de manipulação da atenção e sem maquinações e falseamentos ideológicos.
Para falar sobre o assunto, convidamos os professores Rômulo Cyríaco, Caio Perozzo e Maurício Machado para um evento ONLINE E GRATUITO denominado “Como entender o cinema”. Saiba mais sobre o evento e faça sua inscrição gratuita no link: Como entender o Cinema.