Perfeição e mediocridade: Um sinal de vida ante a miséria humana
Existe um evidente contraste entre tudo que poderia ser e tudo o que de fato é. A disposição das nossas almas diante desse contraste é o que revela a vida que há (ou não) em nossos corações.
Imagine um lugar escondido, distante, localizado no Brasil, mas preservado, intocado por toda a miséria brasileira.
Lá, não acontecem milhares de crimes por ano, pois todos convivem com ordem e justiça. Você caminha pelas ruas, e tudo parece ordenado, humano. A arquitetura é inteiramente bela e harmônica. Onde há música, você não ouve nada abaixo de um Villa-Lobos ou, ao menos, de um Cartola. Na missa, o canto gregoriano quase faz você se esquecer de que um dia tentou rezar enquanto seus ouvidos eram esmagados pelos ruídos e estampidos daqueles grupos que nunca aprenderam música.
Você não encontra nos livros, nem nos jornais, escritores menores do que um Nelson Rodrigues ou um Gustavo Corção. Os diretores espirituais daquele lugar, que os tem aos montes, estejam todos no nível de um Padre Antônio Vieira ou, pelo menos, de um Frei Damião.
Enfim, imagine que todas as possibilidades humanas mais altas que podem vir a realizar-se de fato se realizem e estejam todas presentes, no mesmo lugar e ao mesmo tempo.
Agora, olhe em seu redor e tente avaliar o quanto a realidade que nos circunda se aproxima ou se distancia do cenário que imaginamos.
“Que miséria! Como tudo é medíocre!”, você há de concluir.
É natural que esse exercício nos cause um incômodo quase insuportável e indescritível, pois nos leva vislumbrar como nossa realidade está aquém do que ela pode ser.
Bem, se nos incomoda, é sinal de que ainda estamos vivos, pois é esse mesmo incômodo que deve nos mover a não nos conformamos com toda essa miséria. Do contrário, estaríamos mortos por dentro.
Não é possível que as coisas se deem tão aquém de suas possibilidades e nós achemos isso normal.
Não, isso é como um sinal da destruição do ser humano, mas nós ainda não estamos, ao menos de todo, destruídos.
Há esperança.
É muito fácil que desejemos a perfeição em relação às coisas alheias para que possamos desfrutar maximamente delas. Mas, se queremos que tudo seja o mais perfeito possível para o nosso próprio deleite, por que não aplicamos o mesmo critério sobre as nossas próprias vidas?
No último texto que publicamos, nós propusemos o exercício de imaginar um lugar ideal, escondido em algum canto do Brasil, onde todas as coisas e pessoas chegaram à máxima realização de sua existência natural.
Daí refletimos a respeito do profundo incômodo que isso nos causa quando contrastado com a realidade que nos circunda, onde quase tudo é medíocre e miserável.
Como dissemos, é bastante natural que esse incômodo seja despertado em nossas almas. Afinal, todos temos uma sede pela perfeição, pela completude de todas as coisas segundo a sua finalidade. É isso que pulsa e está inscrito desde sempre em nossos corações.
Veja, por exemplo, o que move o seu interesse e o seu apreço na literatura, no cinema, nas artes em geral e até nos esportes.
Mesmo sem que perceba, você espera encontrar em alguma dessas coisas, ou em todas elas, situações de dramas e conflitos humanos intensos e profundos: esforço, sacrifício, superação, vitória, redenção…
No centro dessa apreciação intelectual e estética está invariavelmente aquele elemento de grandeza, de completude: um grande drama, um grande mal e um grande bem, o conflito entre ambos, com o bem sobressaindo-se e sendo elevado à perfeição.
A verdade é que todos queremos nos deleitar com coisas que são superlativas, mas, ao mesmo tempo, agimos como se fosse normal que a nossa própria vida não seja assim.
Aquele cenário imaginado no e-mail anterior e esses elementos de apreciação de que estamos falando agora nos mostram que é muito fácil que percebamos e nos conformemos com esse desejo por perfeição em relação às coisas alheias.
Mas se nós desejamos que todas as coisas alcancem, para o nosso deleite, o máximo possível, segundo a sua própria natureza e sua finalidade, por que não aplicamos a mesma medida sobre a nossa própria vida?
Observemos a nossa vida como está hoje e para onde ela está rumando, levando-a, inalterada, para o encontro com a morte, o que veremos?
Encontraremos “cada coisa em seu lugar”, como diz Manuel Bandeira no poema Consoada, ou sofreremos o arrependimento de uma “vida inteira que podia ter sido e que não foi”, como o mesmo Bandeira anuncia no Pneumotórax?
Daremos o mesmo testemunho dos grandes guerreiros, heróis, santos ou sábios de outrora, ou de um Ivan Ilich, que apenas à beira do fim percebeu: “Talvez eu não tenha vivido como se deve”?
Aliás, é exatamente o testemunho daqueles grandes guerreiros, heróis, santos e sábios que torna mais evidente a nossa miséria, nos mostrando que não faz sentido algum aceitarmos que a nossa própria vida pode ser vivida com essa mesquinhez de entrega, com esse pouco esforço empregado em fazer dela o máximo que pode ser.
Seus exemplos constatam como estamos vivendo em oposição àquilo que pulsa no coração humano e que eles, ao contrário, apresentaram uma obra completa, segundo a sua finalidade.
E isso é belíssimo, é perfeito; uma vida que vale a pena e que, em razão do que é o ser humano, faz sentido ser vivida.
O que não faz sentido é que não tentemos, árdua e vigorosamente, levar a nossa própria vida ao seu máximo. Afinal, como verificamos até aqui, desde o início dessa reflexão, tudo só parece pleno, completado, quando é de fato levado ao máximo.
Parece estar, então, respondida a pergunta com a qual abrimos o texto:
O que seria a humanidade se todas as pessoas levassem à máxima medida sua existência?
Bem, nós não podemos garantir o que seria de toda a humanidade, mas podemos vislumbrar o que seria da nossa própria vida e, assim, começar a resolvê-la para que não nos reste apenas o fracasso existencial.
A nós, que vivos ainda estamos, há tempo. Precisamos manter vivo o desejo de sermos o melhor que podemos, para que, ao fim, não ouçamos de nós mesmos e d’Aquele que haverá de nos julgar:
“Ah, que pena! Tudo o que podia ter sido e não foi…”
Essas seriam as piores e mais duras palavras, porque haveríamos de escutá-las por toda a Eternidade.