No mundo contemporâneo, as doenças mentais, morais e espirituais se alastram de modo tal, que a covardia, o egoísmo e o medo não só são tidos como virtudes, como tornaram-se mandatos da lei. Assim surge o reino do egocentrismo.
Ao longo da história, o homem sempre tentou racionalizar o medo, tendo-o registrado por incontáveis símbolos e a ele fazendo as mais diversas alusões.
Em não poucas culturas, o temor já serviu como instrumento pedagógico, ordenador, doutrinário, como artifício de defesa, proteção e até como ferramenta de ataque, controle e dominação.
Na mitologia grega, por exemplo, Ares (Marte para os romanos), o deus da guerra, da carnificina, do impulso e do descontrole, é pai de Fobos, deus do medo, e Deimos, do terror. Eles o acompanhavam em todas as batalhas, indo à frente de seu carro para assombrar os guerreiros inimigos, enchendo seus corações de pânico e horror.
Assim, tomados pela covardia, os adversários fugiam, deixando seus exércitos fragilizados e dando a Marte uma vitória fácil.
Símbolo bastante adequado é esse. As guerras não são sempre acompanhadas de medo e terror?
Mais propício ainda, talvez, para descrever os nossos tempos: não vivem Fobos e Deimos a acossar os corações dos homens de nossa era?
Sim, guerras abertas e declaradas temos aos montes; e nessas o seu trabalho é ostensivo. Mas há ainda aquelas guerras implantadas, incutidas que, ocultadas pelo barulho externo, encontram um terreno silencioso no interior das almas e dos corações, onde, por isso mesmo, podem estender-se ao longo de vidas inteiras.
Guerra contra a ordem, contra a natureza, contra Deus, contra o homem, universal e particular — de si contra o outro e de si contra si mesmo.
Tudo tornou-se ameaça a uma estabilidade e uma segurança que sequer existem no campo da realidade. Assim, o medo passou a ser constante, irrefreável e absoluto.
Exemplos que o atestem não nos faltam, e há dois, três, quatro anos, eles eram ainda mais evidentes.
A verdade é que as sociedades contemporâneas produzem cada vez mais, em um nível verdadeiramente pandêmico, um medo irracional de tudo e de todos. Fobos e Deimos são semeados incessantemente, de modo que, por temer a tudo e a todos, os homens não mais se abram ao outro e acabem, como ouriços, por fechar-se em torno de si mesmos, e o mundo é transformado no reino do egocentrismo.
Essa, inclusive, foi uma relação observada por Rudolf Allers, filósofo e psicólogo do século XX, que identificou o medo e o egoísmo. Ele propôs que o homem que se centra em demasia sobre si mesmo acaba por desenvolver um anseio patológico por segurança.
Ou seja, a pessoa ensimesmada quer proteger-se a todo custo, até de coisas imaginárias. Ela preocupa-se excessivamente com aquilo que lhe pode suceder e acaba por perder a capacidade contemplativa, de olhar para a sua própria realidade, para o mundo, para as demais pessoas e para Deus.
Assim, em função do medo, vai se fechando cada vez mais em si mesma e passa a não enxergar mais nada para fora.
Claro, há um medo salutar, que é uma defesa importante do apetite irascível frente a um mal próximo, difícil de evitar e de enfrentar. Afinal, diante de algo que é verdadeiramente temível, o melhor é temer; a ninguém é bom viver temerariamente. Não à toa, São Jerônimo dizia que o temor é o guardião das virtudes.
Mas não é dele que falamos, e sim daquele que é irrefletido, desconfiado; aquele que oblitera a mente e aprisiona a alma na imagem daquilo que se teme.
Esse é o medo que, dominando o homem por tempo indeterminado, lhe priva da razão, levando-o a ignorar o outro e a cometer injustiças.
É o medo que nos torna egoístas e que parece ser a única coisa que os senhores do mundo querem que nós sintamos, incentivando-nos além da covardia egocêntrica.
Em razão dele, as pessoas do nosso tempo, temendo perder uma segurança que não existe, acabam, na verdade, perdendo a sua própria humanidade. O mundo, então, transforma-se no reino de Marte, onde — fora e dentro — não há amor ou paz, pois só resta impulso, descontrole e desconfiança.