O homem que vive à procura de bens deteriorantes está preso em uma caverna escura. Para que possa libertar-se e expurgar o coração dos bens que lhe aprisionam e corroem, nem sempre é eficaz utilizar da força, mas antes é preciso que ele possa imaginar como possíveis os bens superiores dos quais se vê privado.
Muitas pessoas que acabam de abrir os olhos para a necessidade de uma vida séria de estudos, do desenvolvimento moral e da purificação dos gostos e dos afetos, comumente passam por uma fase de pregação da alta cultura.
Esse é um período confuso na vida de quase todo recém-convertido — esteja claro que não falamos exatamente da conversão religiosa.
O sujeito provavelmente tinha um grupo de amigos com os quais compartilhava os mesmos interesses musicais, cinematográficos, às vezes literários… Freqüentava as festas e churrascos da família, participava animado das rodas de conversa, e não se incomodava ou até apreciava o som dançante dos pancadões e dos sertanejos do momento que tocavam…
Agora tudo mudou. Quando não consegue evitar os amigos ou se vê obrigado a participar das reuniões familiares, ele está sempre carrancudo. Não suporta mais as discussões a respeito daquele seriado que todos estão assistindo; fica ofendido com o fato de todos continuarem gostando daquela barulhada ritmada, enquanto está convicto de que ninguém deveria ouvir aquilo e se interessar daquela forma por coisas tão banais.
Ele até tenta manter-se silente, cordial, ainda que inconformado. Mas invariavelmente chega um momento em que tudo aquilo é demais, e, não poucas vezes, isso acontece justamente quando alguém lhe convida a dar seu contributo numa conversa da qual até então ele lutava para manter-se ausente. É aí que começa o show.
“Como vocês não percebem que isso tudo é lixo? Isso não serve para nada! Vão ficar para sempre nessa miséria? Parem de assistir a essas porcarias, de ouvir esse monte de sujeira, de ler essas banalidades que só deixam vocês mais burros! Leiam Dante, Shakespeare; escutem Bach! Isso que é música, isso que é literatura, isso… isso que é vida!”
Todos ficam confusos, boquiabertos, alguns tentam segurar uma risadinha, o mais engraçadinho lança uma troça, e ele, pouco tempo depois, vai embora revoltado, mas certo de que fez o melhor dos trabalhos, sentindo-se como o portador da luz que há de iluminar e abrir a mente de todos ali: “Agora essa gente acorda para a vida”.
A partir daí, é comum que ele busque encontrar todas as oportunidades possíveis para novas pregações, mas não deve conseguir muito mais do que simplesmente encher o saco de todos.
É como aquele primeiro prisioneiro a libertar-se de suas amarras na alegoria da caverna, de Platão, que, após uma vida inteira nas sombras, consegue fugir, vislumbrar a luz do sol e enxergar os objetos dos quais até então só conhecia os espectros. Então, vê-se obrigado a voltar e despertar seus companheiros para a realidade de que foram privados.
Acontece que, como era aquela a situação de todos desde a infância, eles acreditariam ser as sombras que vêem projetadas na parede da caverna a realidade inteira, não existindo nada fora dela.
Veja. Não podemos negar as intenções do nosso pregador, mas ele não podia usar de uma pior abordagem.
O que muitos ignoram, sobretudo quando começam a dar os primeiros passos na vida da inteligência, da literatura, da cultura etc., é que não adianta impor, à força da ordem, que alguém abandone algo efetivamente ruim, sem, antes, lhe dar os meios para amar algo superior.
Quando se quer levar uma pessoa a um bem superior, é preciso abrir o caminho da inteligência e da vontade. Sem isso, não se pode esperar sucesso. Afinal, do ponto de vista sensível, não há motivos para que ela ame Dante, Shakespeare ou Bach; não há motivos, inclusive, para que ela ame a vida da alma. Para os sentidos, é muito mais aprazível o balançar do corpo ao sabor dos hits mais atuais ou as explosões sensitivas controladas pelas séries e filmes mais banais.
Dizer simplesmente para um sujeito deixar de gostar do que ele gosta é querer que ele rejeite pela carne o que já ama pela carne. Não há como funcionar.
Nesse sentido, podemos observar o que Platão escreve como sendo a experiência de um homem uma nova realidade é apresentada:
“Como achas que responderia a quem lhe afirmasse que tudo o que ele vira até ali não passava de brinquedo e que somente agora, por estar mais próximo da realidade e ter o rosto voltado para o que é mais real, é que ele via com maior exatidão e também se o interlocutor lhe mostrasse os objetos, à medida que fossem desfilando, e o obrigasse, à custa de perguntas, a designá-los pelos nomes? Não te parece que ficaria atrapalhado e imaginaria ser mais verdadeiro tudo o que ele vira até então do que quanto naquele instante lhe mostravam?
E no caso de o forçarem a olhar para a luz, não sentiria dor nos olhos e não correria para junto das coisas que lhe era possível contemplar, certo de serem todas elas mais claras do que as que lhe então apresentavam?”
Todo ser humano está sempre e invariavelmente em busca de um bem, seja ele qual for. E ainda que esteja imerso na miséria de bens inferiores, ele não os verá dessa forma.
Portanto, é necessário descobrir que bens aquele indivíduo deseja para que se possa, por meio de uma analogia, utilizando aquilo que ele já ama, para que, num processo consciente, a sua imaginação perceba o valor e a possibilidade de gozo do que é superior e, assim, possa, com a vontade, decidir amar aquilo pela inteligência, pela alma e pelo espírito.
Pois, afinal, como Platão ainda diz:
“[O sujeito] Precisaria habituar-se para poder contemplar o mundo superior.”
Basicamente, o processo consiste em partir da identificação do bem amado e produzir uma catarse, para que a pessoa consiga expurgar-se daquilo que a deteriora por dentro e, desse modo, adaptar-se para a recepção e a fruição de bens verdadeiros.
Do contrário, não se consegue mais do que o nosso pregador e a sua encheção de saco.